02/07/2016 08h35 - Atualizado em 02/07/2016 08h35

Ufal tem alunos surdos no mestrado em linguística pela primeira vez

Ao todo, 11 candidatos surdos se inscreveram; 4 foram aprovados.
Eles esperam ser exemplo para estudantes na mesma situação.

Derek GustavoDo G1 AL

Marcos e Anne são dois dos quatro alunos surdos do programa de mestrado da Ufal (Foto: Derek Gustavo/G1)Marcos e Anne são dois dos quatro alunos surdos do programa de mestrado da Ufal (Foto: Derek Gustavo/G1)

A Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em Maceió, deu início a mais uma turma do programa de mestrado em linguística. Entre os aprovados, quatro estudantes com uma característica em comum: são surdos. Essa é a primeira vez que um edital do programa permite a participação deles.

O G1 teve a oportunidade de conversar com dois deles. A alagoana Anne Karine de Góes, 29, e o baiano Marcos de Moraes Santos, 42. A reportagem contou com a ajuda do estudante Thiago Bruno na tradução das perguntas e respostas, utilizando a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

As aulas começaram em junho. Anne já é formada e tem pós-graduação em Libras. Ela também é professora, e vê no mestrado uma oportunidade de aperfeiçoar seus conhecimentos.

"Eu quero pesquisar linguística e teoria, para aprender melhor Libras, principalmente porque eu ensino. Quero ter uma metodologia mais aplicada, para enraizar o conhecimento que tenho e o que vou adquirir", afirma a estudante.

Ela conta que quando soube do edital para o programa, não perdeu tempo. "Eu sempre quis fazer mestrado. Já tinha visto muita gente fazendo, mas havia muitas limitações para os surdos. Mas nós surdos temos nossa capacidade. Resolvi tentar uma vaga e consegui. Fiquei muito feliz", diz.

"Quero aprender mais para ensinar melhor", afirma Anne Karina de Góes (Foto: Derek Gustavo/G1)"Quero aprender mais para ensinar melhor",
afirma Anne Karina de Góes
(Foto: Derek Gustavo/G1)

Quem também resolveu tentar a vaga foi o Marcos. Ele veio para Alagoas assim que soube do edital da Fale.

"Eu sou formado em Letras Libras, e sempre pensei em aprofundar meus conhecimentos. Eu sou de Salvador, mas lá não consegui [fazer mestrado]. Fiquei emocionado quando vi o edital daqui", relata.

Para o estudante, espaços como esses acabam ajudando a aproximar ainda mais ouvintes e surdos.

"Antes, a gente percebia uma certa discriminação. Os ouvintes agora estão com um olhar diferenciado sobre a gente. Essa relação [dentro da universidade] tem tudo para dar certo", conclui.

Além da Anne e do Marcos, a turma também conta com um outro estudante da Bahia e uma estudante de João Pessoa, que já dá aula na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Seleção
Quem coordena o Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística (PPGLL) da Fale, onde o mestrado está incluído, é o professor Paulo Stella. Ele explica como ocorreu a seleção desses alunos, realizada entre os meses de fevereiro e maio.

"Os critérios foram os mesmos dos alunos ouvintes. Eles enviaram os projetos, sem se identificar. Sendo aprovados, os candidatos passam por uma avaliação oral para apresentar seus projetos. Tudo foi documentado em vídeo. Por fim, há análise do currículo. Todas as fases são eliminatórias", diz Stella.

No caso dos alunos surdos, foi preciso fazer algumas adaptações. Durante a apresentação oral, por exemplo, intérpretes foram chamados para ajudar. Eles também foram dispensados do exame de proficiência em língua estrangeira, já que a única língua que eles aprenderam é Libras.

Marcos de Moraes Santos veio da Bahia quando soube do edital da Ufal (Foto: Derek Gustavo/G1)Marcos de Moraes Santos veio da Bahia quando
soube do edital da Ufal (Foto: Derek Gustavo/G1)

"O curso todo precisou se adaptar. O tempo todo somos acompanhados por dois intérpretes, que se revezam nas aulas. Também temos alguns professores coordenadores que sabem se comunicar em Libras, o que facilita a comunicação", afirma o professor.

Inclusão
Dois dos alunos surdos são orientados pelo professor Stella. Os outros dois, a Anne e o Marcos, recebem orientação do professor Jair Barbosa.

"Historicamente, o surdo foi silenciado. Não podia participar de nada na sociedade. Ele era, e ainda é, excluído. No Brasil foram séculos de exclusão, de preconceitos, de uma 'morte simbólica', mas temos mudado essa história. Claro que ainda existem muitas barreiras linguísticas, mas isso vai sendo rompido com a presença deles na sociedade", afirma Barbosa.

Essa é a mesma opinião de Paulo Stella. "O que estamos fazendo aqui é histórico. Estamos acostumados a trabalhar com os alunos ouvintes, e trabalhar com surdos é algo novo. Temos que aprender novas formas de agir, de nos comunicar com eles. No fim das contas, é uma maneira de incluir essas pessoas", comemora.

A Anne e o Marcos também não escondem a empolgação, e a possibilidade de servir de exemplo para outros estudantes que enfrentam as mesmas dificuldades que eles.

"Outras universidades resistem muito à entrada dos surdos. A Ufal ter se aberto para isso é algo muito nobre. Agora é só o começo. Eu ainda pretendo fazer doutorado e não parar mais", diz Marcos.

Sentimento compartilhado por Anne. "Quero fazer um concurso para passar, dar aula, fazer doutorado. É cansativo, porque eu também tenho uma filha para cuidar, mas tenho interesse em continuar. Acredito que nós aqui vamos virar referência para mais surdos correrem atrás também".

O edital para o ano que vem já foi elaborado e será divulgado em agosto, e também será aberto a alunos surdos. A primeira fase, em vez de contar com análise de processo, será por meio de prova escrita, com duração de quatro horas. Os candidatos surdos que quiserem, poderão responder à avaliação em Libras e as respostas serão gravadas em vídeo.

620 Aulas no curso de mestrado são acompanhadas por intérprete de Libras (Foto: Ascom/Ufal)Aulas no curso de mestrado são acompanhadas por intérprete de Libras (Foto: Ascom/Ufal)
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