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Política

'A arquitetura é um dos componentes que favorecem as relações de violência nas unidades'

Arquiteta Suzann Cordeiro passou 45 dias dentro de um presídio para entender demandas
Suzann Cordeiro, especialista em arquitetura prisional Foto: Arquivo pessoal
Suzann Cordeiro, especialista em arquitetura prisional Foto: Arquivo pessoal

RIO — Professora da Universidade Federal de Alagoas e coordenadora do núcleo de projetos especiais na área de segurança, a arquiteta Suzann Cordeiro chegou a passar 45 dias vivendo em um presídio de seu estado para entender a arquitetuta prisional e sua relação  com a saúde e a violência entre presos. O resultado de seu trabalho ajudou a criar parâmetros internacionais para a construção de presídios.

Por que foi necessário viver como “presa”?

Percebi que estudar a arquitetura penal de fora, sem a vivência do que acontecia dentro das unidades penais era insuficiente para que se projetasse espaço de melhor qualidade. Porque os projetos eram executados  sempre utilizando informações fornecidas pelo estado. Mas estas informações não eram completamente verdadeiras porque existem coisas que o estado não quer passar. Eu entrevistava agentes e presos, mas havia ali relações veladas. Então, depois de uma semana presa,  eu consegui fazer a pesquisa com mais naturalidade lá dentro e mapeei as relações de poder dentro das unidades.

O Jornal O Globo produziu uma série documental sobre a situação do sistema prisional brasileiro, passando por assuntos como a superlotação carcerária, a violência dentro dos presídios, a solidão das mulheres, entre outros temas.
O Jornal O Globo produziu uma série documental sobre a situação do sistema prisional brasileiro, passando por assuntos como a superlotação carcerária, a violência dentro dos presídios, a solidão das mulheres, entre outros temas.

E como são estas relações?

Por exemplo, onde os líderes de módulo de facção se localizam dentro  da planta. Onde ficam os líderes de fato e os líderes de mediação e como que os componentes arquitetônicos são negociados.  Então, em uma hora a porta de um módulo é de responsabilidade de um agente e ele detém todo o  “poder”. Em outro momento eles cedem este poder para o preso, e o preso domina o módulo . Em que momentos, por exemplo, os agentes penitenciários se retiram da lógica de relações dentro da unidade e passam a ocupar apenas a área de administração e deixam que lá dentro do sistema a coisa aconteça sem que eles procurem saber o que está acontecendo?

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Em que mais a arquitetura penal pode contribuir para o recrudescimento da violência?

Em matéria prima para a produção de armas. A gente usa muito o concreto porque a gente entende que o concreto é de alta resistência e ele é mais “seguro”. Mas o concreto pressupõe você ter armações de ferro e estas armações de ferro servem para eles construírem os espetos e as facas, por exemplo. Foi uma experiência muito interessante que me fez entender que a lógica do sistema prisional é uma lógica completamente distinta do que a gente vê de fora. A partir dessa experiência eu comecei a entender que a arquitetura é um dos componentes que favorecem as relações de violência dentro das unidades prisionais, para favorecer o surgimento das facções criminosas, porque estas facções surgem a partir de uma vulnerabilização da própria população carcerária. A arquitetura é projetada pra proteger quem está fora. Então eles começam a pensar nesta perspectiva: como que eu posso usar esta arquitetura que está protegendo quem está fora para proteger a mim que estou aqui dentro?

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Quais os principais problemas estruturais dos presídios brasileiros?

Os projetos de arquitetura prisional ainda eram elaborados sem muita preocupação com a proporcionalidade dos espaços. Uma sala de aula para uma penitenciária com mil presos era do mesmo tamanho de um espaço que contemplasse 200 presos, por exemplo. O mesmo acontecia com outros ambientes de uma penitenciária, o que já impossibilitava o processo de ressocialização, previsto na lei de execução penal, como escola e trabalho, etc.  Além disso, os projetos realizados até então não tinham qualquer preocupação com a sustentabilidade, o que além de encarecer os custos de manutenção destas unidades, aumentavam exponencialmente os riscos para a saúde dos presos. Isto foi modificado por resolução da presidenta Dilma Rousseff, em 2009.

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Que fatores de sustentabilidade são estes?

A partir de 2010 todas as instituições públicas teriam obrigatoriamente que atender a princípios de sustentabilidade. Dentre eles, a norma que trata do conforto ambiental, de ventilação e iluminação natural como pressupostos para sustentabilidade na arquitetura. Por exemplo, a ventilação adequada permite uma condição de maior salubridade e de menor potencial de transmissão do vírus, o que reduz a transmissão de doenças como tuberculose e hanseníase. Tem questões que são psicológicas. Em uma cela com temperatura alta, por conta de pouca ventilação natural, o nível de stress destas pessoas dentro desse ambiente confinado, em especial dos jovens, ele sobe 30%. Então você tem um agravamento do potencial ofensivo destas pessoas. Fui convidada para integrar o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). Estes estudos também serviram de base para a Resolução 9 de 2011, que mudou o paradigma de construção de presídios no Brasil.