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Transplante de fezes: 3 pacientes contam por que fizeram e como foi

Sim, são garrafinhas com cocô: banco de fezes do Hospital das Clínicas da UFMG - Divulgação
Sim, são garrafinhas com cocô: banco de fezes do Hospital das Clínicas da UFMG Imagem: Divulgação

Luciano Nagel

Colaboração para VivaBem

01/08/2022 04h00

Transplante de fezes. Isso mesmo, você leu certo. Pode parecer estranho quando se escuta, mas é mais comum do que você imagina. O tratamento é indicado quando pacientes têm algum desequilíbrio grave da microbiota intestinal, principalmente causado pelo uso excessivo de antibióticos ao longo da vida.

Microbiota é a coleção de bactérias, vírus, fungos, parasitas entre outros micróbios e seus respectivos genes, que estão presentes, nesse caso, no intestino.

A inflamação causada pelo excesso desse tipo de remédio, chamada de colite pseudomembranosa, ocorre no intestino grosso, provocando diarreia e fortes dores abdominais, causada por uma bactéria chamada Clostridium difficile. Este tipo de transplante, tecnicamente intitulado microbiota fecal, é autorizado pelo Ministério da Saúde e pode ser realizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Diagnóstico errado e muitos sintomas

Diarreia, dor de barriga, cocô, evacuação, fezes - iStock - iStock
Imagem: iStock

A paciente alagoana A.L.C.*, 28, tem doença de Crohn, síndrome que afeta o sistema digestivo e tem como sintomas dores abdominais associadas à diarreia, febre e perda de peso. Ela foi diagnosticada aos 22 anos.

''Foi muito difícil chegar ao diagnóstico. Passei por vários médicos, inclusive recebi um diagnóstico errado e fui parar no hospital, estava muito mal'', conta a mulher, que prefere não ser identificada.

Até o primeiro semestre de 2021, a jovem tomava drogas imunossupressoras de alto custo para amenizar os sintomas da doença. "Chegava a injetar três ampolas do remédio a cada oito semanas'', lembrou.

Em setembro do mesmo ano, ela foi uma das voluntárias a participar de testes com o transplante da microbiota fecal. O procedimento ocorreu no Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), sob supervisão de Manoel Álvaro Lins Neto, médico proctologista.

''Desde que fiz o transplante de fezes, não tomei mais os medicamentos e estou muito bem. Estou satisfeita com o resultado'', afirma.

Motivação: sangue nas fezes

intestino - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

O servidor público R.F.S.*, 48, também foi um dos pacientes a realizar o transplante de microbiota fecal em Maceió. Ele foi diagnosticado com retocolite ulcerativa aos 37 anos, uma doença crônica inflamatória, que atinge principalmente o intestino grosso (cólon).

''Sentia fortes dores no estômago, mas o que me motivou a procurar um médico foi quando apareceu sangue nas minhas fezes. Fiquei internado por 11 dias, com febre e tomando antibióticos. Foi aí que diagnosticaram a doença'', contou.

Antes de fazer o transplante fecal, o servidor público usou um remédio para diminuir o processo inflamatório do intestino. Em meados de agosto de 2021, antes do transplante, teve que suspender as medicações que eram injetáveis.

''Desde então, não tomo nenhum medicamento para tratar a retocolite ulcerativa. Levo uma vida normal e acredito que o transplante teve um resultado bastante expressivo'', afirma. Até o final do ano, ele fará um novo transplante fecal para reforçar o tratamento, ainda em fase experimental.

Banheiro 15 vezes ao dia

Pedro Schestatsky - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Para Pedro, o transplante fecal não alcançou o sucesso desejado
Imagem: Arquivo pessoal

Em 2018, Pedro Schestatsky, 48, neurologista de Porto Alegre, foi diagnosticado com síndrome do intestino irritável, um distúrbio que se caracteriza por ocorrências de desconforto abdominal, dor, diarreia e prisão de ventre.

''Costumava ir ao banheiro umas 15 vezes por dia. Era uma vida bem difícil. Então, li alguns artigos científicos sobre a troca de microbioma, que dá uma melhorada nos sintomas dos pacientes, e resolvi fazer o transplante de fezes'', conta o médico.

Na época, o procedimento foi realizado no Hospital Ernesto Dornelles, na capital do Rio Grande do Sul, sob o comando do médico gastroenterologista Guilherme Becker Sander, chefe do Serviço de Endoscopia da instituição.

Schestatsky explica que o médico pegou as fezes de um doador vegano e, posteriormente, o excremento foi colocado num mixer, que acabou criando um líquido pastoso [aos cuidados de um microbiólogo].

''Essa substância foi inserida no meu organismo durante uma colonoscopia e me senti melhor por três semanas, mas depois tudo desandou e piorei'', disse o neurologista, que não mudou seus hábitos alimentares, parte importante do tratamento da síndrome.

O eixo intestino-cérebro

relação cérebro-intestino; microbiota intestinal - iStock - iStock
Imagem: iStock

Aqui no Brasil, o primeiro transplante de fezes aconteceu em 2013 no Hospital Israelita Albert Einstein, na cidade de São Paulo, e foi para tratar de colite. Já em 2017, o Hospital das Clínicas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) foi pioneiro ao criar um Centro de Transplante de Microbiota Fecal e, além disso, manter um banco de fezes.

De acordo com Daniel Antônio de Albuquerque Terra, gastroenterologista e endoscopista, que trabalha no centro, ''o transplante de microbiota fecal tem indicação bem estabelecida apenas nos casos de infecção intestinal recorrente ou refratária pelo Clostridium difficile''.

No entanto, com o avanço nas pesquisas, o procedimento tem sido estudado como possível opção terapêutica para outras condições e poderá auxiliar pacientes com doenças inflamatórias intestinais, cirrose hepática, síndrome do intestino irritável e até mesmo enfermidades de desordens neurológicas, como esclerose múltipla, Parkinson, autismo e depressão.

''Apesar de todo entusiasmo, deve-se ter cautela com sua utilização, haja vista a escassez de dados sobre segurança a longo prazo'', ressalta Terra.

Conforme o gastroenterologista, atualmente estão sendo conduzidos 17 ensaios clínicos na América do Norte, Europa e Ásia sobre transplante de microbiota fecal em pacientes com obesidade, entre outras enfermidades.

''No entanto, as evidências não são robustas para indicar o transplante nesse cenário e mais investigação se faz necessária para produzir o conhecimento científico almejado. O mesmo ocorre com as doenças neurológicas: há indícios preliminares de benefícios, mas ainda sem nenhuma evidência contundente para indicar o transplante como tratamento rotineiro'', alerta o pesquisador.

Em Maceió, no Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, 21 pacientes com doenças inflamatórias intestinais vêm realizando, desde agosto do ano passado, o transplante de microbiota intestinal, caso das duas pessoas citadas acima.

''Nestes casos, fizemos o transplante para doença inflamatória intestinal —retocolite ulcerativa e doença de Crohn. Não havia mais possibilidade de cirurgia então, sugeri o transplante de microbiota para esses pacientes. Estamos acompanhando de perto os desdobramentos dessa alternativa de tratamento. Não podemos ainda dizer qualquer resultado, pois seria precipitado e toda pesquisa vem com otimismo seguido de ética e precaução", salienta Lins Neto.

Hipócrates, considerado o pai da medicina, já havia observado que a origem de todas as doenças era o intestino. Assim, não causa espanto o fato de que tenham sido identificados quadros de desequilíbrio das bactérias da microbiota entre pessoas com distúrbios psiquiátricos e neurológicos. A atividade de suas bactérias intestinais afeta o estresse e a ansiedade —um microbioma equilibrado pode melhorar sua forma de lidar com estresse, mas um microbioma desequilibrado pode afetar sua saúde mental, por exemplo.

Após o transplante de fezes, Schestatsky se deu conta que o intestino é um dos órgãos mais importantes do corpo humano. ''Ele é o portal da inflamação do nosso corpo, o sistema de defesa [imunidade] está todo nele. É o intestino que absorve os nutrientes e define se a pessoa vai ser diabética ou não. Existe uma relação muito forte entre o grau de diversidade bacteriana que o paciente tem com câncer, asma, Parkinson, autismo. É um órgão de ouro, tão valioso quanto o cérebro, e olha que é um neurologista que está falando isso'', afirma o gaúcho.

Faltam doadores

Um dos grandes problemas do transplante de microbiota fecal é encontrar um doador. A sociedade brasileira ainda não possui essa cultura de doar fezes, e carrega consigo a desconfiança e a falta de informação. Outra dificuldade é achar um cocô que seja compatível com o receptor.

Para ser doador, o candidato passa por critérios muito rígidos em que, além dos exames de hemograma, são avaliados o estilo de vida, hábito alimentar, prática de exercício físico, ausência de sintomas gastrointestinais e infecções, e a não utilização de antibiótico nos quatro meses que antecedem a coleta.

''De 70 voluntários entrevistados para doar fezes, apenas cinco foram classificados, destes, todas mulheres'', comenta o médico de Alagoas.

Se você se interessa em ser um doador, procure por um centro de pesquisa, universidade, hospital ou laboratório na sua cidade que trabalhe com transplante fecal.

*Os nomes dos pacientes não foram usados para preservar a identidade de ambos.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, o primeiro transplante de fezes aconteceu em 2013 e, não, em 2014. O texto foi atualizado.