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Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Por que parte do país decidiu ignorar a 3ª onda de covid? Ciência explica

Movimentação intensa na rodoviária do Tietê, em São Paulo, em dezembro de 2021 Imagem: William Moreira/Estadão Conteúdo

Carlos Madeiro

Colaboração para VivaBem

08/02/2022 11h00

O Brasil atingiu novamente a marca mil mortes diárias por covid-19. Apesar do alto índice, governos não adotaram restrições rígidas de circulação e as escolas estão de volta com aulas 100% presenciais. Os shows seguem lotados, assim como bares e shoppings. A sensação é que a vida segue praticamente normal, enquanto os hospitais começam a encher novamente.

Mesmo os infectologistas fazendo todos os alertas, as pessoas parecem ter largado mão de cuidados adotados em outras ondas, justamente quando vivemos o pico da transmissão e número de casos de covid-19 na pandemia.

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Se você também percebeu isso, ou mesmo se identificou com esse comportamento, não se assuste: isso também é culpa do nosso cérebro, que após dois anos convivendo com a covid-19 tenta buscar em pequenas melhoras álibis para acreditar que vivemos "dias normais".

O neurocientista e escritor Miguel Nicolelis diz que o grande motor da negação do momento é que as pessoas estão exaustas da pandemia.

"Quando se está em situação de risco, as pessoas se apegam a qualquer narrativa que ofereça saída, mesmo que fantasiosa. Por isso mesmo que a gente fala tanto das fake news, as interpretações equivocadas de um fato: elas têm o poder de sincronizar mentes instantaneamente", diz.

Na onda atual, Nicolelis diz que o erro raiz veio da narrativa de que ômicron seria o fim da pandemia e até poderia ser comemorada por ser menos mortal e assim "imunizar" a população. "Isso forneceu um álibi coletivo. Tenho amigos altamente educados, informados, que não resistiram à tentação, à pressão dos colegas, dos amigos. Noto que, cada vez mais pessoas vacinadas estão procurando desculpas para si mesmas e para discursos coletivos", afirma.

E você que começa a buscar e passar informações sobre a situação, porque se preocupa com a saúde das pessoas, é tratado como 'doido varrido' ou pior: torce para a pandemia continuar. Miguel Nicolelis, neurocientista

A sensação de que as pessoas levam uma vida normal induz em outras um movimento já bem conhecido da humanidade: o chamado "efeito manada". Há 100 anos, ele era descrito pelo médico e criador da psicanálise Sigmund Freud no artigo "Psicologia das massas e a análise do eu", publicado em 1921.

"As massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas, o irreal tem primazia sobre o real, e o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro. Elas têm a visível tendência de não fazer distinção entre os dois", dizia.

Livro de Miguel Nicolelis Imagem: Reprodução

Já no livro "O verdadeiro criador de tudo", Miguel Nicolelis usa como exemplo desse efeito —que chama de sincronização de cérebros— os soldados ingleses na trincheira da 1ª Guerra Mundial.

"Ali, só olhando pela trincheira, você sabia que não tinha como sair vivo se avançasse. Mas quando o chamado vinha dos comandantes, o pessoal ia —e, claro, era aniquilado. A chance de sobrevida era próxima a zero, mas havia abstrações mentais, como do nacionalismo, que eram mais fortes que a evidência ocular de que seriam mortos", explica.

Prontos para se isolar, mas só por um tempo

Segundo Aline Lacerda, doutora em neurociências pela USP (Universidade de São Paulo) e professora do departamento de psicologia da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), outro fator que deve ser levado em conta é que nossa mente se preparou para uma mudança de hábitos provisória com a pandemia —e o "aperta-afrouxa" medidas atacam essa lógica inicialmente planejada.

"Grande parte de nós acreditava que a gente ia ter um período de cuidados, de distanciamento físico, e que depois as coisas iam voltar. Nós estávamos até acostumados a mudar os hábitos de forma momentânea, mas a gente não estava pronto para carregar essa mudança por tanto tempo. Quem imaginaria ficar dois anos sem ter um Carnaval, por exemplo?", diz.

O que é um abraço pra gente? É um carinho. Então, se a gente não abraça uma pessoa, é como se não estivéssemos dando esse carinho. A gente terá que descobrir novas formas de demonstrar nosso afeto que não seja pelo toque —o que também é muito complicado pra gente. Aline Lacerda, UFPE

Para ela, as mudanças definitivas que a sociedade deve ter por conta do aprendizado com a pandemia devem ser mais bem assimiladas apenas pelas crianças que estão vivendo o momento numa fase de absorção de conhecimento.

"Para quem é criança, a aprendizagem desses novos hábitos para não pegar o vírus vai ser muito mais tranquila. Para a gente, que nasceu e cresceu em um mundo sem covid, mudar nossos hábitos de forma tão longa é realmente algo mais difícil —embora seja necessário", diz.

Evento privado com shows e lotação em Cabedelo (PB), em janeiro Imagem: Reprodução

Dimensionamos mal o risco

Luís Correia, diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, explica que é natural (e conhecido da ciência) do comportamento humano um lado cognitivo impreciso de dimensionar riscos à vida.

"A aversão ao risco às vezes é descalibrada. Por exemplo: às vezes a pessoa tem mais medo da vacina do que da covid, embora a doença tenha muito maior probabilidade de matar; ou a pessoa tem mais medo de andar de avião do que de carro, embora o carro seja muito mais arriscado. A nossa percepção de risco nem sempre é proporcional ao verdadeiro risco", diz.

Entretanto, ele faz a ressalva que, apesar dos necessários cuidados, o risco hoje é "realmente menor, e nossa percepção fica menor ainda".

"Nós temos a vacinação e o número absoluto de pessoas hospitalizadas e que morrem é menor que na onda passada. Em todos os momentos da pandemia, a gente foi menos restritivo que o ideal. Fizemos, digamos, 80% menos do que era recomendado em cada momento, e talvez hoje a gente siga num percentual parecido", explica.

Mas pode existir uma normalização como mecanismo humano. É como se a doença, na cabeça das pessoas, já fizesse parte da vida, em meio à vontade da pessoa de voltar às suas atividades normais. É como se a gente se acostumasse com a covid. Luís Correia, Centro de Medicina Baseada em Evidências

Imagem: iStock

Se permitem, eu vou?

Luciana Santana, cientista política da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) e coordenadora da Rede Análise, lembra ainda outro fator: a falta de comunicação oficial e de políticas públicas claras que induzissem as pessoas a uma nova autopreservação nesse momento.

"O que eu vejo nesse negacionismo é que ele tem a ver com ausência de políticas públicas amplas de conscientização, como uma maior divulgação da pandemia em si. A gente está no meio de um grande processo de desinformação, e as pessoas estão cada vez mais desconfiadas. Isso faz com que elas percam o referencial de para onde se deve mirar", diz.

Outro ponto que ela analisa é que a chegada da vacina deu uma maior segurança às pessoas, que aproveitam a falta de medidas de restrição para seguirem a vida normalmente.

"A vacinação deu essa sensação de maior segurança para as pessoas tomarem essa decisão [de sair de casa]. Como os eventos estão ocorrendo, com a permissibilidade por parte do estado para aconteçam, dá sinal de que há autorização para que essas pessoas possam frequentar esses espaços", diz, citando que o negacionismo da letalidade da pandemia sempre ocorreu no país, influenciado em muitos momentos pelo próprio governo federal.

"Aqueles que não estão se vacinando já não iriam fazer isso, iriam se aglomerar. E para esses digo que faltaram políticas públicas direcionadas para conscientização. Por isso você tem esse boom de pessoas que não se preocupam com a pandemia, nem com elas mesmas. Elas foram induzidas", diz.

Bolsonaro mostra caixa de cloroquina a uma ema no Palácio da Alvorada, em julho de 2020 Imagem: REUTERS/Adriano Machado

A disputa ideológica, por sinal, não é uma exclusividade brasileira e move ainda com mais força países como os Estados Unidos.

Michele Moraes de Sá e Silva, diretora do Centro de Estudos Sobre o Brasil e integrante da Rede Brasileira de Mulheres na Ciência, mora em Oklahoma (EUA) e cita que a polarização política tomou conta do país na pandemia. "As medidas são enfrentadas de maneira muito diferença entre democratas e republicanos", diz.

"Eu moro numa cidade universitária em um estado conservador. Usar máscara aqui é um ato de resistência, é uma afirmação política. E aí aconteceram dois movimentos: quem não usava máscara antes continua não usando; e quem já usava máscara de pano ou cirúrgica, agora essas pessoas estão de máscara N95 porque elas sabem que os demais não vão estar de máscara", finaliza.

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