Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Pesquisador remove produção russa de base de dados e gera debate sobre 'cancelamento científico'

Plataforma concentra dados sobre diversidade de répteis; editor do site afirma que não era intenção punir colegas, mas trazer luz para um protesto contra a guerra

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São Paulo

Na última semana, a área de estudo conhecida como herpetologia (estudo dos répteis e anfíbios) esteve no meio de um debate bem ácido, e isso não tem nada a ver com os animais peçonhentos que são normalmente objeto de pesquisa.

No último dia 10, o site Reptile Database, que concentra informações sobre todas as espécies já descritas de répteis, divulgou sua newsletter para os assinantes e colaboradores do portal —em sua maioria herpetólogos, pesquisadores de áreas próximas e estudantes interessados nesses animais— com as inclusões mais recentes de espécies na lista, atualizações de nomenclatura e uma mensagem política, fora do usual.

Lagartos da espécie Corucia zebrata (lagartos-rabo-de-macaco), no Zoológico de São Paulo
Lagartos da espécie Corucia zebrata (lagartos-rabo-de-macaco), no Zoológico de São Paulo - Eduardo Knapp - 29.mai.18/Folhapress

"Normalmente, não nos posicionamos politicamente nesta newsletter, mas com a invasão da Ucrânia, sentimos que é necessário. [O presidente da Rússia] Vladimir Putin foi longe demais com a invasão da Ucrânia. Como forma de protesto, removemos mais de mil artigos russos nessa versão da lista, a maioria de artigos publicados ou produzidos por autores russos", dizia o texto.

E, apesar de reconhecer que haveria um "dano colateral", principalmente de cientistas de outras nacionalidades que colaboraram com tais autores, a mensagem dizia ainda que "não desejava ‘punir’ os colegas russos, mas lembrá-los que a guerra só pode ser parada dentro da própria Rússia".

"Os boicotes em todo o mundo deixam claro que a Rússia está se isolando no plano mundial. [...] Esperamos que a academia russa (incluindo herpetólogos) converse com seus colegas e com a elite política sobre como tal invasão está gerando uma russofobia global e que isso irá criar um efeito rebote massivo e forçar o estado a retirar as tropas da Ucrânia", concluía o texto.

Contudo, o ativismo político do editor do site, Peter Uetz, herpetólogo alemão e professor na Universidade de Commonwealth Virginia, nos Estados Unidos, não foi recebido de maneira positiva pelos seus pares.

As respostas que se seguiram foram de duras críticas à decisão, classificada como "fazer da ciência e dos cientistas reféns de guerra", "praticar censura", "enviesada" e que "pune os cientistas e é irrelevante para Putin ou no contexto político da guerra".

Muitos, ainda, disseram que iam parar de citar a base de dados, a principal fonte de informação sobre répteis, contendo mais de 11 mil espécies com dados sobre distribuição, taxonomia (nome da espécie e a qual grupo pertence) e fotos para identificação.

Um dos primeiros a responder foi Jean-François Trape, pesquisador do Instituto de Pesquisa pelo Desenvolvimento (IRD, na sigla em francês) em Dakar, Senegal. "É uma decisão vergonhosa, que eu condeno. Todo cientista como indivíduo tem o direito de ter suas opiniões, mas cabe à ciência produzir o conhecimento, e não ser um juiz", disse por email à Folha.

Na última quarta (16), uma atualização no mesmo portal dizia que a remoção era temporária e que "os artigos russos estarão de volta no próximo fim de semana —no mais tardar no domingo, dia 20".

Nota no portal The Reptile Database, que concentra informações sobre espécies de répteis, informando que mais de mil artigos russos foram removidos da lista atualizada como forma de protesto contra a Guerra na Ucrânia
Nota no portal The Reptile Database, que concentra informações sobre espécies de répteis, informando que mais de mil artigos russos foram removidos da lista atualizada como forma de protesto contra a Guerra na Ucrânia - Reprodução/reptiledatabase.org

Questionado sobre o que o motivou, Uetz disse que essa foi "uma decisão difícil". "Remover os artigos foi um sinal de protesto, e não era minha intenção punir ninguém ou praticar a discriminação. Queria falar com eles como cidadãos e lembrá-los que essa guerra não afeta somente ucranianos, mas todo o mundo, especialmente os próprios russos."

O herpetólogo se disse ainda surpreso com a reação fortemente negativa. "Recebemos muitas críticas e até mesmo ameaças. Foi chocante ver as pessoas nos acusando de racismo e discriminação, mas também recebemos várias mensagens de apoio, embora a maioria tenha sido contra o nosso ‘banimento de artigos’."

Para a herpetóloga e professora da Universidade Federal do Alagoas (Ufal), Luisa Diele-Viegas, a remoção dos artigos promove um retrocesso, mesmo que momentâneo, no conhecimento científico. "Não funciona como protesto porque os artigos científicos não são produzidos para fim individual, são produzidos para o avanço da ciência em determinada temática. Outros trabalhos que precisariam desses artigos no período em que ele [Uetz] determinou a remoção das informações ficarão prejudicados", diz.

Outro ponto levantado é sobre como tais atitudes podem ser semelhantes a um ato de censura. "As redes sociais se tornaram um ambiente extremamente tóxico, e é difícil até mesmo diferenciar uma crítica legítima sobre determinado assunto de um cancelamento. Nesse caso, os que sofreram foram os cientistas russos, e não o governo", afirma a pesquisadora.

O também herpetólogo e cientista político Scott Thompson afirma que chamar o ato de censura é correto, mas a situação é mais grave do que isso. "O que ele [Uetz] fez é, politicamente, uma sanção e, mesmo temporárias, sanções são ferramentas políticas poderosas. O Reptile Database não está em posição de pressionar qualquer pessoa que tenha alguma influência sobre a situação na Ucrânia", disse.

Uetz, no entanto, refuta críticas de praticar censura, e diz que a atitude não tinha intenção de protestar contra o governo especificamente. "A remoção não foi um protesto contra o governo, foi uma forma de atrair atenção para o tema. Como cidadãos e cientistas, temos uma certa responsabilidade social. A maioria dos cientistas contrários ao Donald Trump ou ao Jair Bolsonaro não fizeram nada para impedi-los de se elegerem. É nossa responsabilidade também informar ao nosso povo quais são as consequências se determinados políticos forem eleitos."

Sobre esse assunto, Diele-Viegas diz que é o mesmo que punir os brasileiros pelas decisões do governo de Jair Bolsonaro (PL) sobre os povos indígenas e a Amazônia. "Imagina se a comunidade científica internacional decidisse boicotar a ciência brasileira por causa dos atos praticados pelo governo. Isso prejudicaria a ciência brasileira única e exclusivamente", diz.

Trape, do IRD, diz não concordar também com esse tipo de ativismo político. "A história da humanidade sempre foi consequência de guerras e conflitos. Por essa lógica, teríamos que boicotar autores, atletas e artistas de todos os países, desde o homem de Cro-Magnon. Além disso, nos últimos 30 anos os Estados Unidos foram responsáveis direta ou indiretamente pela morte de mais civis e militares do que a Rússia, e nunca houve sanções", disse.

Para Uetz, há tanto argumentos a favor quanto contra realizar ações como essa, e que uma visão mais equilibrada está frequentemente em falta no debate virtual. "Na verdade, poderia ser mais eficaz se uma coalisão de cientistas protestasse contra decisões políticas obviamente ruins, mas tudo depende das circunstâncias. Ninguém deve sofrer pela sua elite política, mas todos somos afetados pelos nossos governantes", afirmou.

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