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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Nordeste está secando com mudanças climáticas, alerta relatório do IPCC

Caatinga tem sofrido com altas temperaturas e evapotranspiração - Getty Images/iStockphoto
Caatinga tem sofrido com altas temperaturas e evapotranspiração Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

07/03/2022 04h00

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Em meio à guerra entre Ucrânia e Rússia, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) lançou seu novo relatório alertando para impactos "irreversíveis" caso a humanidade não freie o aquecimento global. Nesse contexto, os cientistas listam problemas que já afetam o meio ambiente e aponta o Nordeste como uma das três regiões do planeta que estão em um processo de secagem dos rios.

O documento traça um mapa global da tendência do fluxo médio anual de rios feito por 7.250 observatórios entre 1971 e 2010. "Algumas regiões estão secando", crava o documento, colocando no cenário, além do Nordeste do Brasil, o sul da Austrália e a região do Mediterrâneo.

Para os pesquisadores, isso ocorre, "principalmente, pelas mudanças em grande escala na precipitação, fator que influencia a evapotranspiração; e alterações do tempo de acumulação de neve e degelo devido ao aumento das temperaturas".

O IPCC não para por aí. Diz que as mudanças nessas regiões serão mais graves se a temperatura continuar a subir nos próximos anos. "Espera-se que quaisquer mudanças induzidas por mudanças climáticas nos regimes de fluxo e na conectividade dos rios alterem composição de espécies, além de ter impactos sociais", diz o documento.

O aumento da frequência e intensidade das secas pode fazer com que rios perenes se tornem intermitentes; e rios intermitentes desapareçam, ameaçando peixes de água doce em habitats já caracterizados por calor e secas.
Relatório IPCC

Mapa publicado no relatório do IPCC colocando Nordeste como área que está secando - IPCC/Reprdoução - IPCC/Reprdoução
Mapa publicado no relatório do IPCC colocando Nordeste como área que está secando
Imagem: IPCC/Reprdoução

Seca e calor

O semiárido (no Nordeste e norte de Minas Gerais) é um bioma que já sentiu a força dos chamados eventos extremos. Entre 2012 e 2017, a região viveu a maior seca da história. Isso gerou consequências ambientais, como a morte de animais, migrações e problemas para as plantações e a vegetação.

A situação segue se agravando, segundo estudiosos ouvidos pela coluna.

"No ano passado nós vivenciamos temperaturas de até 41°C em média, enquanto nos anos anteriores 1,5°C grau a menos. O ano de 2021 foi bem severo para o semiárido", diz o professor e pesquisador Emerson Carlos Soares, do campus de Ciências Agrárias da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), citando o desmatamento como um dos problemas que impacta a temperatura na região.

"Nós estamos tendo uma substituição da rica vegetação da caatinga, que gera maiores áreas erodidas —que também se alia à questão da diminuição de chuva. Consequentemente a pastagem vai invadindo e as áreas vão ficando com solo frágil. E sem chuva, a dificuldade é maior para o plantio e para a economia da região", explica.

Soares é coordenador de um projeto anual chamado expedição científica do Baixo São Francisco (região do rio que divide Sergipe e Alagoas). Ele conta que a bacia do maior rio 100% brasileiro passou por um período de sete anos de pouca chuva, o que reduziu a vazão e causou impactos.

Além disso, nós estamos tendo aqui também um aumento da aridez, que causa um aumento de áreas desérticas, com o solo cada vez mais pobre. Nós tivemos uma perda, segundo artigos científicos, na ordem de 30% da vegetação nos últimos anos no semiárido.
Emerson Soares, Ufal

23.mai.2014 - Um homem caminha pelo leito seco do rio São Francisco, em Pau Preto (MG) - Lunae Parracho/Reuters - Lunae Parracho/Reuters
23.mai.2014 - Um homem caminha pelo leito seco alto do rio São Francisco, em Pau Preto (MG)
Imagem: Lunae Parracho/Reuters

Segundo o meteorologista e coordenador do Lapis (Laboratório de Processamento de Imagens de Satélite) da Ufal, Humberto Barbosa, o novo relatório do IPCC reforça uma preocupação já externada na primeira parte da análise feita pelo grupo de cientistas, publicada em agosto de 2021.

"Essa segunda parte oferece uma escolha difícil: a humanidade aceita esse status quo desastroso e o futuro incerto e desagradável para o qual está levando, ou pega as rédeas e escolhe um futuro melhor", sentencia.

Barbosa tem um estudo de 2016 citado no capítulo que fala do Nordeste no novo relatório do IPCC. O texto, publicado no Jornal de Ambientes Áridos, que já trazia a preocupação com a escassez de chuva na região.

Segundo ele, a questão-chave para os próximos anos é o aquecimento dos oceanos, que vão ter interferência direta sobre a região. "O oceano Atlântico é o que mais tem aquecido nas últimas décadas, desde 1960 e 1970. Isso vai trazer um impacto na distribuição das chuvas na região, afetando todo o ciclo hidrológico. Ou seja, as secas do semiárido vão ser cada vez mais frequentes e intensas em função dessas características", diz.

Já para a região costeira do Nordeste isso pode trazer chuvas mais intensas. É meio paradoxal, mas é exatamente o que a gente tem visto e que vai intensificar nos próximos anos. A distribuição das chuvas não será linear, podendo ter áreas com secas intensas e no mesmo estado ter regiões com inundações.
Humberto Barbosa, Lapis

Mudanças ja são evidentes, diz especialista

Os problemas já são sentidos por quem vive no semiárido. "Essa mudança já é bem evidente, e as famílias percebem que há uma mudança no sistema de chuva: elas estão mais escassas e mal distribuídas, tanto no tempo, como no espaço. Agora mesmo era para estar chovendo, mas chove pouco e a temperatura está muito alta", afirma Paulo Pedro de Carvalho, da ONG pernambucana Caatinga.

Segundo ele, esse processo ao longo dos anos tem gerado degradação dos solos, inclusive com espécies nativas sem resistir ao aquecimento. "Em muitos locais não compensa mais investir no solo para agricultura, porque não produz mais alimentos — nem pastagem, nem para animais. Inclusive, nessa grande seca, até árvores tradicionais da caatinga —que nunca a gente viu morrer— morreram devido à falta de umidade e temperatura elevada", completa.

15.mai.2012 - População do povoado de Espinheiro, em Tacaratu (PE), sofre com barreiro seco - Beto Macário/UOL - Beto Macário/UOL
15.mai.2012 - População do povoado de Espinheiro, em Tacaratu (PE), sofre com barreiro seco
Imagem: Beto Macário/UOL

Estudo indica áreas de restauração

O professor Carlos Roberto Fonseca, do Departamento de Ecologia da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), é coautor de um estudo publicado na quinta-feira intitulado "Prioridades de restauração para florestas secas da Caatinga: resiliência da paisagem, conectividade e valor da biodiversidade".

No documento, ele afirma que 9% das bacias da Caatinga são consideradas como de alta prioridade para restauração e precisam de uma ação dos governos para que isso ocorra.

"Hoje sabemos que mais da metade da Caatinga já foi desmatada. O que sobra está distribuído em cerca de 42 mil fragmentos de mata isolados e que se encontram em estado avançado de perturbação por caça, extração de madeira, excesso de gado ou uso inadequado do fogo", afirma.

Além disso, relata Fonseca, as mudanças climáticas estão começando a pressionar as espécies, que passam a correr risco de extinção.

Estão ameaçados na caatinga:

  • 31 espécies de mamíferos,
  • 22 sapos,
  • 30 répteis,
  • 65 aves,
  • 350 espécies de plantas*

*Listadas no Livro Vermelho da Flora Ameaçada do Brasil.

"Além disso, todas estas alterações têm causado diminuição da segurança hídrica e alimentar das pessoas", completa.

28.mai.2014 - Caatinga - Parque Nacional da Serra da Capivara (PI) - DanielDeGranville/ AcervoFundaçãoBoticario - DanielDeGranville/ AcervoFundaçãoBoticario
Parque Nacional da Serra da Capivara (PI)
Imagem: DanielDeGranville/ AcervoFundaçãoBoticario

Diante desse cenário preocupante, no ano passado o mundo entrou na Década da Restauração dos Ecossistemas da ONU (Organização das Nações Unidas). "Este é um esforço mundial para evitarmos a perda da biodiversidade, as mudanças climáticas globais e promover a justiça social", diz Fonseca.

Ele cita que, com a ação, já é possível ver recursos internacionais sendo disponibilizados para restauração. "Até mesmo no Brasil temos visto o surgimento de recursos para este fim. O problema é que, se não determinarmos prioridades, estes recursos podem ser gastos sem se alcançar nenhuma meta", diz.

Se bem usado, diz, recursos aplicados em restauração podem render excelentes frutos.

Imagine que descobrimos uma única área que, caso fosse restaurada e protegida, poderia evitar a extinção de 116 espécies de plantas. Definindo prioridades de restauração e conservação podemos sim fazer a diferença.
Carlos Roberto Fonseca, UFRN